jornal La Repubblica, 27-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dizem que se o “raver” fosse um animal seria um cruzamento imperfeito entre um escorpião e uma enguia. “E também uma borboleta. Sempre voando de um lado para o outro, seguindo a batida eletrônica, que, para mim, para nós, é vida”.
Escorpião não por causa do veneno, mas “porque se torna luminescente se é exposto a algumas frequências de raios ultravioletas. É muito bonito. Na verdade, pode-se encontrá-lo frequentemente nos ‘flyers’ (os panfletos de convite para as festas tecno”).
Enguia porque é fugidio, não é possível pegá-la. “Somos difíceis de explicar. Eu mesmo, se você me perguntar, não saberia lhe dizer o que eu sou. Eu lhe diria bobagens. Talvez, você também pode chegar perto, mas, para entender, é preciso vir dançar, e deu. De manhã até a manhã seguinte”. E se o “raver” fosse uma máquina? “Seria um daqueles carros vermelhos e poderosos. Mas não só no motor: justamente como carroceria. ‘Trabalhada’, tipo rally, ‘tunada’. Um pouco ilegal, mas que não se esconde”.
Davide tem 18 anos, cabelos curtos pintados de amarelo, um pouco descoloridos, é alto, desengonçado, natural de Parma. É sobrevivente da love Parede. É um “raver”, “mas não um troglodita”. Ele conta: “Nos encontros, se bebem rios de cerveja, a droga rola solta. Mas o agito é a música, uma metralhadora que te esvazia, toda a adrenalina do mundo”.
A impressão, provavelmente inexata, é que o fato de deixar o corpo solto enquanto fala, as mãos, os braços, os joelhos, um movimento involuntário do pescoço, lhe cause um prazer sutil ou até o o erga do compromisso mental de ter que controlar as artes. Ele tem no bolso um recente diploma de geômetra, os óculos com armação vermelha que ele tinha há 24 horas na Love Parade de Duisburg e mais de 40 tickets: tantos quanto as cervejas que ele consumiu com um amigo durante a festa do amor e da morte.
O encontro pela primeira vez fora da estação ferroviária da cidade alemã: camiseta com o logotipo de um gigante da informática, bermuda, tênis Nike marrons de basquete, boné, mochila, pochete. Um piercing tribal fura a sua bochecha esquerda, dois pelos de barba. No dia seguinte, ele se apresenta vestido do mesmo modo no setor de partidas do aeroporto de Dusseldorf. Tínhamos combinado o encontro, mas eu não esperava muito dele. Ele, “raver” em viagem, volta para os campos de Parma. Muito provado no físico, mas, jura, “com muitas coisas boas na cabeça”.
“Sinto pelos mortos, mas foi tudo estupendo”. O pacto com Davide é este: “Falemos, mas só se não surgir a mesma coisa de sempre, ‘raver’ igual a drogado, igual a troglodita. Porque agora é fácil… 19 mortos, não? Quantos são?”. Dezenove. “… pois então, e a moça italiana, e toda a complicação, e a Love Parade. Menos mal que não morreram por causa de uma ‘cala’ ou por causa de um ‘kate’, senão, tchau”.
Espero um segundo. “A ‘cala’ é o comprimido, o ecstasy. O ‘kate’ é a ketamina (anestésico utilizado principalmente com fins veterinários, age deprimindo o sistema nervoso central). Assim deixamos de lado logo o assunto droga. É inútil ficar girando ao redor: nas raves, nas ruas, na Love, praticamente jogam em cima de você essa coisa. Não precisa nem pedir. Uma ‘cala’, 10 euros. Um envelope de ‘kate’, 20. Depois, existem os cartões (LSD). Nos ‘after’, que seriam a continuação das raves e de todas as festas, legais ou não, você os encontra por duas liras”.
Perguntar a Davide se e o que ele toma quando vai dançar por dez horas seguidas é como jogar uma bola de tênis contra um muro: ela volta, e é provável que você não consiga mais pegá-la. “A minha energia é natural”. “Muita cerveja. Em Duisburg, bebemos dez litros entre dois. Entramos às quatro e saímos à meia noite. Das confusões, não vimos nada”.
Os “ravers”, quando falam de si mesmos, ou levantam logo um muro ou adoram fazer surgir a ideia da seita, da comunidade fechada. Que depois, na realidade, se abriu muito, removendo os limites para além do estereótipo. Davide destrói a ideia da iniciação, do ritual. “A primeira vez, há três anos, em Bolonha: na ’street parade’. Quem me levou foi um amigo que ia a vários ‘teknival’ europeus. A ’street’ é tranquila. Cheguei e fiquei de boca aberta: os carros, muitos, muito bonitos, cheios de pessoas e colotidos, como um carnaval, as caixas de som enormes que disparam a música. Depois de uma hora eu já estava sob o efeito do primeiro ‘cassone’ [de caixa]. O ‘cassone’ é a experiência mais forte que você pode fazer em uma rave: você fica o mais perto possível das caixas de som, uma metralhadora nas orelhas. Uma grande sensação. Você dança, se deixa transportar pela energia, não pensa mais em nada, se esvazia, sente ao seu redor a adrenalina do mundo. Mas você é leve.
Há um amigo meu que faz paraquedismo. Fomos juntos ao Traffic de Turim (festival tecno). Ele experimentou o ‘cassone’ e me disse: ‘ah, é melhor do que se jogar de paraquedas’. Entendeu? Para fazer o ‘cassone’, as pessoas ficam em fila esperando. Porque são muitos. São torres, altares. Para um raver, fazer o ‘cassone’ é como fazer a comunhão na igreja durante a missa. Mas esse é justamente um prazer físico”.
Depois de Bolonha, foi Milão, depois de novo Bolonha, depois Davide também começou a ultrapassar as fronteiras: Suíça, Alemanha, Holanda, Polônia, Sérvia. Milhares de quilômetros para dançar sob a furadeira da trance, do electro, do hardcore, do hardstyle. “Todos os meses eu faço uma. Para Duisburg, partimos de Parma às quatro horas da manhã do sábado. Às quatro horas da tarde, estávamos lá no meio. Chamamo-la de fábrica do agito, é uma grande festa. E você também pega algumas meninas. Muitas vezes – sorri –, as moças que você encontra nas raves e nos festivais estão muito eufóricas. Quando você está ali, vai direto ao ponto: não se fala e a música te envolve, é uma linguagem dos corpos. Você se conecta logo, acredite”.
O alto-falante anuncia o embarque do voo para Milão. Em uma hora, Davide já foi ao banheiro três vezes. Pergunto se ele está bem, se está tudo certo. Ele diz que sim, que não tem nenhum problema. No celular, chovem mensagens. “É a ‘community’, eles te avisam sobre os próximos encontros. Mas se você for lá, pode ver o que acontece”. “No dia 7 de agosto, vou ao Valley Festival, na Holanda. No dia 14, o ‘Energy 10′, em Zurique, que é o fim do mundo”.
Verifico clicando no site de uma agência especializada. Esses são eventos legais, patrocinados: onde está o mistério? “Não existe”. Ou talvez sim. “No festival, acontecem as mesmas coisas que acontecem na rave ilegal organizada por mim e por ti em um pavilhão ou em uma fábrica abandonada. Agora, posso lhe perguntar uma coisa?”. Sim. “Antes, eu lhe disse que o meu filme preferido é o ‘Trainspotting’. Escreva que eu também assisto ‘Ben 10′, um desenho animado com um menino que se transforma para se defender dos aliens que querem destruir o planeta”.
By. Yasmin Alencar (Juventude Remida ; Pombal - PB)